Ainda Estou Aqui (2024), e a memória da ferida que segue aberta no Brasil
Na madrugada do dia 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva deixou sua casa para uma suposta investigação de rotina de policiais à paisana e nunca mais retornou. Os anos subsequentes foram marcados por uma luta incessante de Eunice Paiva em busca de respostas sobre o paradeiro do marido, enquanto enfrentava a dura tarefa de manter a unidade e segurança da sua família. Essa é a história retratada no filme Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, adaptado do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que manifesta não só a melancolia íntima dessa família, como também escancara essa ferida histórica brasileira.
O filme de Salles comunica essa violência da espera eterna, com a sofisticação de saber enfocar sua linguagem justamente onde a aflição é mais íntima: o seio familiar. Apesar de um momento específico do longa, que merece comentário posterior, existe uma certa sutileza na forma como é encarada essa história pelo diretor, que consegue dosar o lado emocionalmente apelativo que alguns de seus filmes costumam carregar. A escolha de rodar os primeiros minutos em meio ao cotidiano familiar foi muito acertada, pois, para compreender a dor da ausência, é necessário conhecer o gozo da presença. Na pele de Rubens Paiva, Selton Mello possui minutos muito importantes, em que consegue encarnar de maneira muito delicada essa ternura paternal, às vezes simplesmente por estar em cena, com uma fisicalidade ímpar, que, de certa forma, só reafirma a importância daquela presença na alma familiar. Esta, muito bem representada no trabalho de cores intensas e enquadramentos quase íntimos de Adrian Teijido, sempre nos aproximando do nosso objeto de atenção, a família Paiva, que preenche todos os espaços de blocagem, circulando livremente pelos caminhos de um lar que sabemos, cedo ou tarde, sofrerá um duro golpe. Após a prisão de Rubens, toda a luminosidade e vivacidade desses personagens é sugada pela escuridão da incerteza e pelo vazio dos enquadramentos que insistem em acompanhar Eunice e sua família. Impossível não se impactar com a discrepância do ânimo das cenas introdutórias gravadas em Super 8, com a sequência da chegada dos militares na casa dos Paiva. Eles fecham as portas, janelas e cortinas, e ocupam os espaços daquele que outrora fora um lar iluminado e movimentado. É inaugurada, então, uma nova relação do filme com a luz e a sombra, acompanhando a jornada de uma família que, daquele ponto em diante, também não terá mais dias de sol pleno. Essa penumbra só não desmorona completamente rumo à escuridão total pelo esforço homérico de Eunice Paiva.
É despejada nas costas da matriarca da família Paiva a responsabilidade colossal de administrar todas as consequências daqueles acontecimentos no âmbito familiar. Abruptamente, Eunice se depara com variadas demandas, todas urgentes, em que necessita buscar justiça pelo desaparecimento do seu companheiro de vida, enquanto tenta manter de pé as finanças familiares, tudo isso equilibrando-se na corda bamba de manter as esperanças — suas e de seus filhos — mesmo quando essa esperança se distancia cada vez mais da realidade, de um possível retorno daquele que partiu sem uma despedida decente sequer. Na atuação mais sublime de toda sua carreira, Fernanda Torres rouba para si todos os holofotes possíveis, sendo o pilar central dessa tragédia familiar. Impressiona a habilidade da atriz principal de expressar sentimentos tão díspares com tamanha delicadeza, transitando com muita fluidez entre a amabilidade, apreensão, horror, ira e tristeza. Em um certo momento do longa, após uma notícia horrível trazida por um amigo da família, Eunice decide acompanhar seus filhos em uma ida à sorveteria. Ela repara nas demais famílias que a cercam, naquela aparente felicidade da intimidade não despedaçada, e se permite, por alguns míseros segundos, sofrer a constatação daquele não retorno de quem se espera, quando, de supetão, sua atenção é capturada por uma de suas filhas, e aquela tristeza profunda do olhar é rapidamente convertida em brandura, em mais um dos momentos sublimes de interpretação da excelente Fernanda Torres. Essa cena também carrega ideias interessantes que transcendem os limites de um "cair de ficha", trazendo à superfície a triste ironia de que o mesmo silêncio que fere pela falta de notícias de Rubens também é a ferramenta de manutenção das aparências que sustentam aquele grupo familiar quebrado. A Eunice vivida por Fernanda não se limita a desligar televisões, abaixar volumes de rádio ou calar perguntas daqueles que já possuem idade suficiente para vislumbrar o terror, mas, principalmente, priva a si mesma de sentir as dores daquela realidade desgraçada que bateu à sua porta, para que, assim, consiga de alguma forma blindar seus filhos de todo aquele mal sentimento.
As sequências que envolvem a saída da família do Rio de Janeiro ainda provocam ideias conflitantes em mim, confesso. Acho interessante a ideia de enxergar na venda do terreno e a partida da Casa Grande uma materialização da morte dos sonhos e planos ceifados pela tragédia, assim como gosto de perceber esse olhar de uma Eunice que não se limita aos tormentos daqueles acontecimentos, possuindo uma vida fora daquilo. Contudo, também foram nesses recortes que passei a sentir algumas maquinações didáticas/forçosas de Salles em torno de um melodrama que, para mim, vinha sendo muito bem conduzido. A cena envolvendo Fernanda Montenegro, na pele de uma Eunice senil, me provocou uma leve desconexão momentânea, por quase apelar para carregar o espectador a um lugar de emoção maior, que ao menos para mim, as demais passagens do filme já tinham feito com mais coesão. Compreendo a ideia por trás dessas sequências, de estabelecer a memória de uma dor que nunca abandonará aquela família, ainda que ressignificada, mas não consegui deixar de sentir essa maquinação saltar da tela. Nada que tenha provocado maiores impactos; a desolação ao final da jornada foi total.
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
É quase inevitável terminar o filme e não fazer conexões mentais automáticas com outras mídias. "Pedaço de Mim," dueto de Chico Buarque e Zizi Possi, gravado em 1978, assim como o longa de Salles, retrata muito bem a tortura quase infinita dessa angústia de muitas famílias que não puderam se despedir de seus amores. Esses pedaços arrancados de muitos lares arrasados tornam coletivo o trauma de um país que não enfrentou o legado de sua Ditadura com a frontalidade e dureza necessárias. Ainda Estou Aqui chega como uma ótima contribuição do cinema, relembrando a memória que eles tentam apagar, condenando o período que eles insistem em absolver, e acusando a aflição dessa ferida que segue aberta, jorrando o nosso sangue.


