A necropolítica da fome e sua desolação estética, em Planeta Fome (2025)
Assistido na primeira exibição pública de contrapartida do Projeto contemplado pelo Edital 001/2023 -- Funcultural, Lei Paulo Gustavo, no dia 15/03/2025.
Era julho de 2021, quando o Fantástico lançou uma reportagem escancarando a crescente de uma crise alimentícia, em meio ao caos sanitário da pandemia de Covid-19. Na capital mato-grossense, filas e mais filas foram formadas para disputar retalhos de carne em pedaços de ossos. Mais tarde, em outubro daquele mesmo ano, em uma matéria de Caroline Borges do G1 SC, uma imagem amaldiçoada de cobrança por ossos foi registrada.
Inspirado pela barbárie, Édier William reuniu profissionais e deu início ao projeto que daria vida ao curta-metragem de animação Planeta Fome (2025). O filme nos introduz à história de Ivani, uma mãe solo que perde o emprego e, junto com seu filho Lucca, de 8 anos, e o cachorrinho caramelo da família, é empurrada para a miséria. O que começa como a luta diária por trabalho e dignidade se transforma em uma jornada de desespero. Os dias passam, mãe, filho e cachorro perdem tudo: o lar, os móveis, as refeições — até restarem apenas uns aos outros.
A amplitude crítica do olhar de Édier fica evidente em cada quadro do curta de animação, que não possui diálogos e, em virtude disso, se debruça nas fortes imagens construídas pelo storyboard de Devalmir Oliveira e pela animação de Luan Ott. Logo no primeiro plano de ambientação, vemos uma Porto Velho futurística e monocromática que, não fossem as três caixas d'água como ponto turístico icônico da capital rondoniense, em meio à massiva verticalização e modernização arquitetônica, seria apenas mais uma metrópole desarborizada qualquer. Mais tarde, acompanhando o trânsito de Ivani e Lucca para o trabalho e a escola, percebe-se que o tempo imenso passado no sucateado transporte público se torna sintoma da arruinação do cotidiano do trabalhador, que elimina sua qualidade de vida em prol da necessidade de sobreviver. O desenvolvimento econômico destrói a identidade estética da cidade, prejudica a locomoção dos personagens da casa ao trabalho e do trabalho para casa, e assassina os matizes possíveis da agora monocromática Pérola do Madeira, que aparenta não brilhar mais.
Essa desolação em que a cidade cinza do futuro se encontra, somada à estética pelicular simulada do curta (durante toda a exibição, é possível observar texturas de película — as chamadas "cicatrizes do analógico", muito comuns em filmes entre os anos 30 e 80, auge da utilização de películas de 35 mm), reforça de maneira perspicaz o que as próprias inspirações do filme já acusam: a alegoria da distopia rondoniense reflete problemas sistêmicos que já ocorrem, não só regionalmente, mas a nível global, há muito tempo.
Ivani, Lucca e seu cachorrinho vivem em meio a essa realidade distópica; porém, em um primeiro momento, assim como boa parte dos espectadores do próprio filme, observam a dureza da miséria apenas como testemunhas. São pobres, mas possuem moradia — ainda que alugada — e também conseguem bancar o consumo de alguns poucos alimentos. Enquanto mãe solo, Ivani se desdobra em mil mulheres para conseguir dar conta de ser presente na vida de Lucca, fornecendo a melhor criação e educação possíveis, além de conseguir alimentar a todos, incluindo o cachorro. Essa condição um pouco melhor, no entanto, é sempre acompanhada de uma sensação de desconforto e instabilidade, muito alimentadas pelo excelente trabalho sonoro de mixagem e edição de Tullio Nunes. Aqui, acontece a construção de uma ambiência sonora agoniante, que vai gradativamente afligindo o espectador, junto da montagem, que sequencia muito bem as cenas de uma mulher e seu filho, miseráveis, pedindo comida em frente a um banco, ou de pessoas famintas embaixo de viadutos, como prenúncios da miséria do porvir. Essa angústia em escala, elaborada pela trilha e pela edição, é a marca da desolação estética da miséria e da fome, que invadem o lar de Ivani, Lucca e o cachorrinho.
Os alimentos, que nos primeiros minutos de exibição eram o único resquício de cor daquela capital em constante apodrecimento, desaparecem de cena com a perda do emprego de Ivani (em virtude de um atraso de minutos, computado por um robô em uma porta, sem nenhuma possibilidade de contraditório). Os ossos, que outrora eram apenas restos gratuitos e indesejados por quem de fato podia comprar peças de carne, agora passaram a ser cobrados. As portas dos bancos e a escuridão dos viadutos, que antes eram motivo de comoção para Ivani, Lucca e seu cachorro, em virtude da inadimplência do aluguel, se tornaram a sua realidade.
Essa transformação cruel — da cor ao desbotamento, do alimento à ausência — evidencia que o que se apresenta como falha do sistema é, na verdade, o próprio sistema operando como previsto. É nesse ponto que se faz necessário recorrer à ideia de necropolítica: conceito cunhado por Achille Mbembe para descrever o poder de decidir quem deve viver e quem pode morrer, seja pela violência direta, seja pela indiferença institucionalizada. No Brasil e no mundo, essa lógica ganha contornos precisos na administração seletiva da escassez — onde a fome, a miséria e o desalento deixam de ser efeitos colaterais e passam a ser engrenagens centrais de um projeto de morte. Não se trata de acidente ou negligência, mas de uma política deliberada que transforma vidas em números e corpos em restos. E é justamente isso que Planeta Fome performa: a estetização desse abandono, sem alívio ou esperança, apenas o esgarçamento do humano diante da lógica fria do capital.
A necropolítica da fome, nesse cenário, não é apenas pano de fundo: é o próprio motor da narrativa. Em Planeta Fome (2025), Édier William articula um projeto que ultrapassa a denúncia e se consolida como elaboração sensível de um sistema que administra a morte — não só a morte física, mas a morte simbólica e cotidiana de milhares de corpos precarizados. A estética do apagamento é um gesto político: a monocromia da cidade, o ranger metálico dos trens e ônibus, a eternidade da superlotação dos trajetos, o silêncio dolorido dos personagens — tudo aponta para um mundo em que o sofrimento dos pobres foi estetizado a ponto de se tornar invisível. A fome aqui não é apenas a ausência de comida; é a ausência de futuro, de fala, de pertencimento. E o filme escancara que não há distopia no que já é rotina para boa parte da população brasileira: a desnutrição como espectro real e a perda de direitos travestida de progresso urbano.
Planeta Fome (2025) encerra-se, assim, sem nenhum alívio catártico. Não há redenção, milagre, nem lição de superação. Ao final, resta apenas o corpo — o da mãe, do filho, do cachorro — esgotado, desumanizado, indistinguível da paisagem desalmada que os cerca. O espectador, diante da tela, é forçado a encarar o abismo de um país que abandonou seus cidadãos à própria sorte. A desolação estética do curta não é mero artifício narrativo, mas uma forma de tornar insuportável o que nunca deveria ter se tornado normal. É um chamado à revolta — dos mais doloridos possíveis.